segunda-feira, 14 de março de 2011

Rótulos...

Como cidadão europeu do século XIX , era racista e eurocêntrico convicto. E anti-semita. E reacionário. E a favor da guerra. E misógino. Era mau pai. Mau marido. Teve uma amante enquanto casado. Tinha tendências homossexuais. Adepto da Magia. Um bruxo.

Ao longo dos anos, Verne vem sendo alvo de dezenas de rotulagens, algumas contraditórias, algumas medianamente coerentes, outras tantas francamente equivocadas, quase todas apressadas e na maior parte das vezes, injustas. Ninguém pode confirmar ou desmentir muitos desses "rótulos", por total e absoluta falta de documentação histórica. Outros têm necessariamente que ser analisados no contexto da época em que o escritor viveu e trabalhou. Por exemplo, como a sociedade se via naquele tempo? Como ela reagia? Quem eram para ela os "selvagens" e como eram percebidos? Por que? Como eram as crianças da época? Como se divertiam? Qual a relação da Europa com os outros povos do planeta?


Eurocentrismo, racismo e o século XIX

Vamos ler o que nos diz Ronaldo Rogério de Freitas Mourão, o maior especialista em Verne no Brasil: "Na realidade, Jules Verne ao defender a expansão colonizadora que levaria a ciência e tecnologia ao mundo, adotou uma posição moderadamente racista embora fosse um antiescravagista sistemático em toda sua obra. Talvez na sua crença nas promessas trazidas pelo conhecimento científico fizesse acreditar na importância do expansionismo ocidental como uma continuidade do processo surgido no período das luzes, durante o qual se acumularam enormes informações biográficas, botânicas, geológicas e culturais."

"(O pensamento da época era que) caberia ao europeu levar e difundir a sua civilização pelo planeta, ainda em sua maior parte habitado por selvagens. Nesta época, os índios e os negros eram apresentados em geral como seres subservientes que aceitavam docilmente o domínio dos brancos."
"A própria obra de Verne, em virtude da sua preocupação com a geografia - não se deve esquecer que Verne foi membro da Société de Géographie de Paris -, sempre defendeu uma integração, ou melhor, uma globalização cultural e racial (certamente, se vivesse hoje, seria contra a globalização econômica)."

Mesmo sabendo que a ideologia da superioridade do homem branco era um fruto da época a que só muito poucos eram capazes de escapar, reconhece-se o profundo ardor antiescravagista de Verne em dezenas de obras, como "Norte Contra Sul", "A Jangada", "A Estrela do Sul", "A Ilha Misteriosa" e tantas outras. Quanto ao eurocentrismo, como explicar, então, seu personagem mais famoso, aquele que ele legou para a História da Literatura mundial? Nemo era um príncipe hindu em luta constante contra o colonialismo britânico. Robur seguía a mesma linha contestadora. Quantas aventuras passadas nos mais diversos países do planeta, com heróis brasileiros, argentinos, chineses, russos ...


Livros "infantis"

Embora alguns livros tenham sido escritos com personagens de pouca idade, e por isso mesmo, sejam identificados com os mais jovens ("Um Capitão de Quinze Anos", "Petit Bonhomme (ou O Homenzinho)", "Dois Anos de Férias") é de um simplismo inaceitável o "estigma" (Verne riria disso, porque adorava escrever para crianças, também) de "escritor infantil".

Talvez o engano esteja em se ler adaptações - que são muito comuns hoje em dia e de um modo geral, são bastante condensadas e simplificadas - achando-se que se está lendo Júlio Verne.
Suas primeiras obras como "Hatteras" (onde há mortes terríveis em grande quantidade), "Viagem ao Centro da Terra", "Cinco Semanas" etc - não tem absolutamente nada de infanto-juvenis. Quem leu "O Castelo dos Cárpatos", "A Esfinge dos Gelos", "Diante da Bandeira", "As Índias Negras", "O Raio Verde" e tantos, tantos outros, conhece um Verne ora grave, ora pessimista, ora lúgubre, ora humorista, ora romântico, que passeou seu talento e imaginação, com maestria, por todos os outros gêneros.


"Escritor fora de todas as normas"

Assim o analisa o crítico literário e universitário Pierre Picot numa edição da revista Europe-Revue totalmente dedicada a Verne, e continua: "Cada um teima apaixonadamente em ler nele o que, no fundo, mais não é do que o reflexo das próprias expectativas : escritor para adolescentes, bardo do progresso técnico e capitalista, libertário mascarado, admirador de heróis das libertações políticas e coloniais, reacionário racista e anti-semita, eterno adolescente dedicado ao culto de rostos femininos juvenis. Eis, pois, em poucas linhas, matéria que chega para um século de batalhas acadêmicas sobre Júlio Verne."

Sem ambiguidades, Pierre Picot assume claramente uma admiração profunda: "Nisto tudo, fica esquecido o escritor laborioso que publicava dois volumes por ano, o fantasista espetacular (...) autêntico inovador no imaginário da modernidade. A sua obra é imensa e reserva muitas surpresas. Júlio Verne é um autor para quem a narrativa de exploração é um pretexto para uma meditação muito poética sobre o desconhecimento de uma realidade que as palavras não conseguem domar."

Talvez o melhor disso tudo seja a constatação de como o homem Jules Gabriel Verne e sua obra suscitam até hoje, cento e oitenta anos depois de seu nascimento, discussões, polêmicas, acusações e defesas igualmente apaixonadas. E como seus livros são lidos e debatidos até hoje, e como sua influência se faz notar todos os dias.

Nada mal para um escritor infantil ...

1 comentário:

Anónimo disse...

Realmente Verne não tem nada de infantil e é errado quando dizem que o género o é pois em algumas obras, como é o caso, por exemplo, de "Viagem ao Centro da Terra" ocorre em "espaços" impossíveis e por isso só as crianças gostam do "fantástico". Será assim tão "fantástico"? E apenas as crianças gostam do "fantástico"?

Não. Verne escreve "para toda a família" e até mesmo os livros apontados às crianças podem ser lidos por adultos e compreender certos aspectos, características de personagens que passam despercebidos a uma criança normal.

Eu por exemplo iniciei-me na Viagem ao Centro da Terra e gostei bastante mas acredito que quando o voltar a ler, irei com certeza achá-lo ainda mais fantástico (aqui como magnífico e não como género) do que quando o li mais jovem.

Verne agrada dos 8 aos 80 e se alguem na sua vida só lesse Verne, não se iria arrepender! Iria aprender muita coisa e...viajaria pelo mundo todo!