domingo, 1 de julho de 2007

Crítica 'Robur, o Conquistador (1886)'

A ficção científica tem bem mais do que a sua conta de personagens anti-sociais mas geniais, poços frequentemente irascíveis tanto de inteligência como de arrogância e desprezo pelo comum dos mortais. Não é o único género em que este tipo de personagem surge, naturalmente, mas na FC ele é particularmente abundante, e por cada Nero Wolfe ou Sherlock Holmes que surgem noutros tipos de literatura haverá na FC uns dez capitães Nemo ou Professores Challenger.
Robur, o Conquistador, é mais um membro desse ilustre clube.
Não é, aliás, a única personagem deste romance que partilha dessas características. Quer o Uncle Prudent quer o Phil Evans, as outras duas personagens principais do livro, não são desprovidos de arrogância ou inteligência. Mas não ponhamos a carroça à frente dos bois e comecemos pelo princípio.

De forma algo incaracterística no contexto da obra de Verne, Robur, o Conquistador inicia-se envolto em humor. Começa por descrever uma série de acontecimentos insólitos que giram em torno de estranhas luzes ou sons sobre várias cidades do mundo inteiro e toda a agitação e disputas que esses acontecimentos ocasionam nos meios académicos, alvos de um sarcasmo impiedoso nesse primeiro capítulo. Logo em seguida, Verne conduz-nos a Filadélfia e a uma tempestuosa reunião de um clube de balonistas, o Weldon Institute, onde somos apresentados às três personagens principais sem que o sarcasmo esmoreça. Uncle Prudent é o presidente do Weldon Institute e de uma facção dentro dele e Phil Evans é o cabecilha da facção oposta, dedicando-se ambos a discutir com toda a veemência que se possa imaginar a posição mais adequada de um propulsor num dirigível. E é nesse momento que Robur irrompe pela sala adentro acusando todos aqueles defensores do mais leve que o ar de não passarem, bem vistas as coisas, de um bando de patetas, o que causa um burburinho que é fácil de imaginar.
Sai Robur da sala, perseguido por vaias e insultos, dá o Uncle Prudent por finda a assembleia e sai também, ainda embrenhado na discussão com Phil Evans, os dois acompanhados por Fricollin, o criado negro de um deles, e o romance toma aí o rumo aventuresco mais habitual nas histórias de Verne, se bem que intercalado por tentativas de humor muito menos bem sucedidas do que a princípio, girando em geral em torno do criado Fricollin, que é retratado como um poltrão ignorante, supremamente preguiçoso e indigno de confiança.

E entramos numa espécie de versão condensada e aérea das Vinte Mil Léguas Submarinas. O capitão Nemo é agora Robur, outro homem misterioso, detentor de uma tecnologia revolucionária que neste caso é uma espécie de Nautilus aéreo, o Albatroz, um aparelho semelhante ao helicóptero mas com uma multiplicidade de rotores em vez de apenas um. Os dois balonistas e o criado vão acabar na mesma posição do Professor Aronnax e companheiros: raptados e sem possibilidade de fuga, a bordo do aparelho comandado por Robur e tripulado por uma tripulação que lhe é tão fanaticamente dedicada como a tripulação do Nautilus é a Nemo. E partem também numa viagem em volta do globo, sem fim à vista.
Ou seja: num romance publicado quase vinte anos depois da longa viagem submarina a bordo do Nautilus, Verne repete tema e enredo de forma condensada (este livro tem apenas um terço da extensão das Vinte Mil Léguas Submarinas), e até personagens, como se o objectivo de escrever este Robur fosse pouco mais do que apresentar a nova ideia de maravilha tecnológica e descrever algumas coisas que se poderiam fazer com ela caso existisse, e o autor tivesse decidido que isso bastava para tornar o livro interessante. Mas esse facto transforma este romance num sucedâneo e portanto num romance menor, que ainda por cima se revela tingido de racismo, sempre desagradável mesmo que saibamos bem que a ideologia da superioridade do homem branco era a fruta da época a que só muito poucos eram capazes de escapar.
Apesar de tudo, Verne é sempre um óptimo contador das histórias mais extraordinárias, em especial quando não se deixa perder em descrições demasiado longas. E assim, a leitura de Robur, o Conquistador flui com bom ritmo, e acaba por deixar qualquer coisa ao virar a última página: a ideia do Albatroz, precisamente, no fundo a personagem fundamental neste livro.
E com uma tradução de bom nível (e já muito antiga) remata-se um livro que em geral é agradável. Se aqui houvesse meias estrelas talvez desse três e meia, mas não há e fecho nas: ★★★★

Crítica escrita por Jorge Candeias, um dos melhores críticos nacionais, e cedida gentilmente para o blog JVernePt. É o autor do magnífico site E-nigma, Revista Electrónica de ficção-científica e fantástico, um site que eu recomendo bastante.

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